Os quatro estúdios do complexo Audio Porto, situado no terceiro andar da Fábrica do Futuro, no bairro Floresta, que integra o 4º Distrito de Porto Alegre, foram poupados da enchente. A água ficou apenas no térreo. Porém, no último dia 18, três novas salas de ensaio e gravação seriam inauguradas, e essas estavam situadas no primeiro piso. Antes de estrearem, já estavam debaixo d’água.
— A nossa ideia era fazer salas menores, para poder oferecer estúdios mais em conta. Foram seis meses de desenho e implementação. Foi investido bastante dinheiro em uma acústica primorosa nas três salas, pelo menos R$ 120 mil, sem contar que íamos abrir para o mercado e elas iam começar a faturar. Mas isso nunca vai acontecer — lamenta o sócio do Audio Porto, Rafael Hauck.
Ele projeta que, agora, estes três espaços deverão ser remontados em um formato diferente, possivelmente readequados e cedidos para iniciativas focadas em educação. Ou seja, não retornarão no formato para o qual foram projetados. Pelo menos pelos próximos meses, outros tantos estúdios, entre veteranos e novos no mercado, também desfalcarão a cultura gaúcha.
— Existe um movimento de tentar valorizar o 4º Distrito há algum tempo. Acredito que a volta da confiança em investimento nessa área vai levar muito tempo, porque vai ter que se provar. A duas, três quadras daqui do Audio Porto, tinha cinco, seis casas noturnas que empregavam bandas, DJs e equipes e faziam muito movimento. Tinha uma migração desse movimento para cá, e o impacto dessa enchente vai ser gigantesco, até porque o pessoal já está com pouco fôlego depois da pandemia — reflete Hauck.
Apenas no 4º Distrito, uma das regiões mais afetadas pela enchente em Porto Alegre e que é um polo de estúdios, outros tantos empreendedores deste segmento viram a água atingir os espaços construídos para abrigar música e que agora estão no mais absoluto silêncio, quebrado apenas pelo barulho dos lava-jatos que removem o lodo impregnado. Um exemplo é o Roots, de Fábio Klein, inaugurado em 2000 e que está praticamente devastado, da estrutura aos equipamentos. Logo quando começou a enchente, o proprietário foi com a família para o litoral, mas ao retornar à Capital viu os seus 24 anos de esforço debaixo d’água.
— Quando cheguei, a situação era pior que todos os pesadelos que eu tinha tido, pior que todas as minhas ideias mais pessimistas. Não tinha sobrado praticamente nada. O que estava um pouco erguido caiu, boiou. O que se salvou foi o que estava com pedestal, que eram duas caixas de som, que são o retorno de voz. Guitarra, baixo, tudo perdido. Na bateria, entrou água em todos os tambores, se salvou só o bumbo, porque o ergui mais alto — descreve Klein.
O proprietário do Roots, que serve como espaço de ensaio, principalmente, para músicos de heavy metal, estima que apenas o prejuízo com instrumentos pode chegar a R$ 25 mil. A casa de Klein, que fica na parte da frente do estúdio, também foi alagada, incrementando ainda mais as suas perdas.
— Não tenho previsão de quando o estúdio retornará. Estamos organizando um mutirão com clientes e amigos do estúdio para tirar tudo o que estiver podre e colocar no lixo. A ideia é começar a limpar para ver o que dá para fazer, se é viável voltar a construir o estúdio ou não. Tem o medo de que aconteça de novo — lamenta o proprietário do Roots.
Incertezas e resiliência
A dúvida sobre reabrir o local ou não aflige também Vanessa De Conti, gerente do estúdio audiovisual 271, no bairro São Geraldo. O local, aberto em 2022, começou a ganhar tração no ano passado para recuperar parte do investimento. Não durou um ano e agora a água atingiu a altura de 1m65cm, assolando o térreo do empreendimento.
No local, são gravadas principalmente campanhas publicitárias, mas já abrigou gravação musical. Recompor a estrutura — que é completa, em um espaço amplo, de dois andares, com três estúdios no térreo — deverá custar cerca de R$ 300 mil, de acordo com Vanessa. O alto valor gera insegurança nos gestores, o que se intensifica com o prazo de, no mínimo, 40 dias para poder voltar a funcionar. Até lá, sem fluxo no caixa e ocorrendo apenas gastos.
— A gente começou a tomar corpo agora e, no meio disso, se quebrou. Provavelmente, toda a galera do audiovisual também está em uma situação muito difícil, porque todos os trabalhos que estavam marcados, a partir de agora, com a situação do Estado, acabam entrando em compasso de espera. Talvez até acabem perdendo estes trabalhos para agências de outros Estados. Vai ser uma situação bem complicada para todo mundo. Até entender como o mercado vai se comportar, vai levar muito tempo — analisa a gerente do 271.
Saindo da cena porto-alegrense, Carlos Eduardo da Silva, o Neni, é proprietário do HX – Produtora e Estúdio, que fica em Canoas. Mesmo com a água tendo atingido 3 metros de altura, deixando seu empreendimento praticamente submerso, ele comemora que, horas antes de a água atingir o seu negócio, teve a intuição de retirar todos os equipamentos e instrumentos.
Mesmo assim, calcula prejuízos entre R$ 50 mil e R$ 100 mil, devido ao fato de a podridão da água da enchente ter afetado o piso de madeira, o mobiliário e o revestimento acústico do estúdio, que tem apenas um ano e meio de funcionamento. Para retomar o seu empreendimento — algo que planeja fazer —, porém, acredita que deve levar ao menos sete meses, entre limpeza, remoção da umidade e reconstrução do espaço.
— Um estúdio é um investimento de uma vida. Não é uma coisa que o cara faz de uma hora para outra. Tem que ter muita resiliência. Os equipamentos são todos caros e demora para construir um estúdio. E ver tudo debaixo d’água é muito triste. Muitos músicos também foram afetados. O cenário é bem complicado. Sei que alguns não vão ter força de se reerguer, mas tenho fé de que outros vão surgir e a música não vai parar. Vamos ser resilientes e seguir em frente. Eu não vou desistir, vou reconstruir — afirma o dono do HX.
Cena complicada
Os irmãos Lauro e Felipe Arreguy fundaram, na garagem de um imóvel da família, em 2004, o Ampola Estúdio, “bem no coração do bairro São Geraldo”, como dizem. Com uma sala e um bar, o espaço é profissional, mas não deixa de ter a atmosfera de um local em que o pessoal se sente em casa. Agora, porém, as portas estão fechadas e ninguém pode ensaiar lá.
A água até entrou na casa da família, mas o estúdio foi a parte mais destruída pela enchente. Os irmãos conseguiram salvar alguns equipamentos, levando-os para o segundo andar da residência, mas a parte estrutural do local de ensaio e gravação foi perdida, incluindo piso e toda a parte da acústica. Eles pretendem retomar as atividades do Ampola, mas ainda não têm um prazo: vai ser devagarinho.
— A cena já estava bem complicada. Estamos aqui há 20 anos, porque a casa é nossa. A pandemia já derrubou muito, mas voltamos porque não precisamos pagar aluguel. Caso contrário, já teríamos desistido. Agora, só vamos tentar voltar porque não pagamos aluguel. Acho que vai ser bem devastador nesse início. Temos muito público de Canoas, de Eldorado do Sul. Como esses caras vão vir? As cidades estão devastadas. Essas pessoas vão insistir na música? Vão ser meses, anos até voltar ao normal — acredita Lauro.
Para ajudar neste cenário complicado, o Audio Porto está realizando uma leitura do mercado, ao lado da Fábrica do Futuro — são empresas irmãs —, além do Loop Reclame, para tentar amenizar o drama que está afligindo a cena musical gaúcha.
— Estamos fazendo um movimento para tentar dedicar uma parte das agendas do estúdio para essas produtoras independentes que tenham sido afetadas. Isso, porém, também vai depender do engajamento do poder público. Queremos dar apoio para os bares, para as pessoas que estavam fazendo shows, trazendo algumas dessas iniciativas para a Fábrica, fazer uma parceria com esses locais — anuncia Rafael Hauck, detalhando que pretende reabrir as portas de seu empreendimento no dia 10 de junho.